21 de setembro de 2009

Fuligens funestas

Ao amigo
O certo seria queimarmos juntos. E eu já imaginava a cena: juntos, todos, queimando nossos papéis, nossas folhas, nossos livros, nossas árvores, documentos, bobagens, vergonhas. Construí o cenário: um campo, bem verde, cheio de fumaça e nós com nossas malas. Depois dali, sairíamos em viagem, uma viagem sem destino e fim, rumo ao desconhecido.
O tempo passa, não é mesmo?! E nós nem percebemos... Já estamos aqui, barbudos e cheios de compromissos. Tantos afazeres, que não nos demos conta de que perdemos nossos telefones e endereços. Nosso ritual da queima coletiva, desde agora, já está inviável. Não temos comunicação. Mas esse não é um grande problema, em tempos que tudo se consegue, menos vencer o fim.
Guardo mil cartas, bilhetinhos insólitos, cartões engraçados e postais bonitos. Coleciono inúmeros convites e ingressos. Tudo para queimarmos depois. E escrevo também. Um pretenso autor de cartas e pequenos manuscritos para serem dilacerados pelo fogo alheio.
Sempre gostei de rituais, e o fim, para mim, deveria ser uma grande e efetiva cerimônia. Mas nem tudo é previsível.
Hoje entrei em casa e não reconheci meu espaço. As fuligens tomavam conta de todo o quarto. E a fumaça invadiu as roupas que deixei no varal. Corri para pegar a vassoura e botar as roupas, de novo, na máquina de lavar. Como toda fuligem, as marcas ficaram no piso. Como toda fumaça, as roupas ainda persistem num cheiro forte e detestável. Era você, quebrando nosso rito e queimando tudo, bem antes do que esperávamos.