3 de janeiro de 2012

Do tempo nublado

(ou Da água que corre ou Do Alzheimer)



- Mãe, tá na hora do almoço.

- Hora do almoço, mãe. Almoço, mãe.

(a dama de branco se aproxima da velha com o prato. arroz, feijão, carne moída, batata cozida e vagem cozida. colher. colher, sim. o olho longe, distante do arroz, feijão, carne, batata e vagem. o olho tão lento quanto as mãos, que já não aguentam nem sequer a colher. sim, a colher. as mãos negras da moça seguram a colher com arroz e um pedaço de vagem, cozida, pois as gengivas sangram na tentativa de mastigar o arroz mais torrado. a mulher, das mãos negras e do anel de pedra azul, ziguezaguea com aquela quase papa)

- Mãe, o almoço, mãe.

Os olhos da senhora, de ralos e alvos cabelos, de pele ressecada e vincada, fisgam o arroz, próximo à boca. Os olhos. Os olhos desviam e voam longe.

Longe.

Carlinhos abrindo a porta. A porta rangendo. Carlinhos corado de sol segurando uma galinha. A galinha tentando beliscar as mãos do Carlinhos. Roberto rindo à mesa, mordendo um pão com a carne de ontem. Lucinha com os olhos cheios de lágrimas olhando a galinha nas mãos do irmão. Julinho rindo da galinha batendo as asas na mão firme do irmão Carlinhos. E eu dizendo pra ele soltar o bicho. Carlinhos soltando o bicho e gritando Hoje tem frango com quiabo meu deus!. Julinho correndo para abraçar o irmão. Lucinha chorando e correndo pro quarto. Roberto tomando café na xícara com a borda quebrada. Carlinhos correndo pra fora. Julinho mordendo a maça que tava em cima da mesa e correndo pra fora. Lucinha passando na porta da cozinha segurando seu lencinho que encostava no chão. Lucinha chorando, ainda, aquele choro sufrido de criança. Roberto enrolando fumo. No rádio novinho uma voz bonita cantando Saudades infinitas me devoram, Lembranças do teu vulto que nem sei. Que cantor, esse Francisco Alvez. O rádio falhando. Roberto pitando. E a galinha deitada na pedra. O facão descendo. O sangue manchando meu avental.

- Mãe. Mãe. Mãe. Olha a comida, mãe. Mãe. Mãe.