19 de janeiro de 2009

Memórias de Motel

Em minha última viagem, resolvi de supetão visitar o Sudoeste Asiático. Cruzei num belo navio todo o Mar Mediterrâneo, saindo da França e indo direto para Qatar, de Doha (capital de Qatar) peguei um trem e fui parar em Tamarhanguerib, uma cidadezinha perdida no mapa, mas que vários amigos asiáticos haviam me recomendado.
Realmente! Os trilhos que me levaram até aquele lugar me alucinaram, por desvendar uma beleza jamais vista por meus olhos. Tamarhanguerib é conhecida por suas imensas plantações de Acelga Rupestre, uma espécie de acelga vermelha muito usada na culinária da Ásia Ocidental, além de ser uma cidade constituída quase que em sua totalidade por famílias muito abastadas. As casas são absurdamente ricas em detalhes e materiais caros, as pessoas são luxuosas e mesmo num calor escaldante, ostentam colares pesados e pulseiras ainda mais grossas.
O fato é que cheguei àquele buraco com apenas U$100,00 e com essa quantia no bolso não daria para procurar hotéis 5 estrelas, então, tratei logo de entrarmos (eu e minhas 2 malas) no primeiro motel que encontrei e parecia ser um pulgueiro.
Uma família de catalões abonados, largaram mão do ritmo acelerado de uma empresa e resolveram montar um motel naquele paraíso, e a espelunca se chamava "Núvols", que eu viria a saber um mês depois que significa nuvens na língua daquela gente.
A quantia à pagar era ótima, mas o conforto nem tanto. Mesmo assim me hopedei ali. Minha idéia era escrever meu 3º livro num lugar bem afastado daqui. A editora me pediu em Novembro do ano passado, para escrever um novo livro, desta vez me dando a liberdade para escolher o gênero da obra. Mas aqui em Curitiba, luto há mais de 2 meses para escrever as duas primeiras linhas do romance (minha escolha). Já havia me afastado da revista, da Clínica, enfim, de todos os meus trabalhos e ainda continuava passando pela crise da inspiração. De início, pensei que na França a tal inspiração viria, mas nada surgiu.
Foi então que encontrei Aparecida do Amaral, grande amiga curitibana, na vernissage de Adolfo Felício, e ela me disse que voltara de Tamarhanguerib e estava fascinada com o lugar. No dia seguinte embarquei.
Voltando ao motel, passei todo o primeiro dia escondido naquele 4X4, lendo todos os livros que tinha levado para a viagem mas ainda não tinha tido tempo de ler. No segundo dia, acordei às 6 da manhã e caminhei por toda a cidade, conheci os dois únicos cafés, a única livraria e as inúmeras chapelarias e perfumarias. Não gastei um centavo sequer, e pelo contrário, eu estava disposto à arranjar um serviço naquele cafundó. Somente no quarto dia, depois de muito andar e conversar com os nativos, desisti de me empregar e voltei para a função do livro.
Para minha surpresa, o motel precisava de mais um funcionário e eu, rapidamente, me inscrevi para a oportunidade. Cheque mate! No quinto dia eu era o mais novo porteiro do Núvols.
No intervalo da portaria, liguei para o Brasil. Jandira me atendeu:
- Querido, você morreu Francisco?
- Não, meu amor. Uma longa viagem. Estou no sudoeste...
A conversa foi longa. Recebi notícias de todos e enviei todas as minhas novas. Estávamos em Março e eu tinha apenas mais 2 meses para entregar o resultado final de meu livro. E nada. A inspiração tinha desaparecido de minha vida. Chorei 7 noites seguidas. E depois de muito desespero, resolvi só voltar a Curitiba com meu livro todo pronto. Caso contrário, continuaria como porteiro de um motel asiático.
Familiarizado com aquele universo tão diferente do meu ocidentalismo, comecei a reparar bem nos costumes da cidade. Minha primeira descoberta, foi a respeito do uso de um motel, que para nós sugere sexo e para eles é apenas um local de descanso e solidão planejados. Dificilmente recebia casais à procura de 3 horinhas de foda. O habitual era receber pessoas (na maioria homens) que pagavam a fim de ficarem reclusas por dias seguidos. Ouvi muitas orações (gemidos, não). Os banhos eram tomados por mais de uma vez ao dia, e talvez por isso o chuveiro fosse a melhor parte daquele meu cubículo.
Tamarhanguerib não era uma cidade preconceituosa. Haviam solteironas convictas, casais gays e mães solteiras aos montes. Logicamete: todos muito ricos. E essa liberdade toda era acrescida de vastos campos verdes, com árvores baixas e troncudas. Aquela magia me suscitava uma louca vontade de correr ao vento, cantar, gritar e rir, mas escrever não.
Francis Costa e Freire, amigo íntimo e compadre, me telefonou na terceira semana e me julgou maluco por abrir mão de minha estabilidade brasileira para me arriscar num romance que eu nem tinha começado a escrever. Ouvi calado, com lágrimas nos olhos e com uma ponta de medo de tudo aquilo ser verdade e eu ter que voltar atrás, sem nada e a essa altura, sem ninguém também.
Desliguei o telefone com um sentimento novo. Eu queria mergulhar fundo. Era isso que faltava: entrega. E eu, mais que depressa, me entreguei de corpo e alma para aquela "loucura".
Na mesma noite, conheci Lucrécia, uma espanhola solteira e completamente apaixonada por aventuras. Levei-a para meu quarto-pulgueiro e transamos até o sol raiar. Nos encontramos mais três vezes e depois nunca mais nos vimos. Sentei num café, na noite posterior, e comecei a escrever algumas páginas de uma obra que não havia nomeado ainda.
Pela manhã trabalhava na portaria e pesquisava a ficha de cada um dos hóspedes, quando possível, interpelava-os para saber mais sobre suas intimidades. À tarde, andava pelas ruas da cidadezinha e conversava com o maior número de pessoas que podia. À noite, sentava-me em algum café ou restaurante e escrevia, varando madrugada.
Passei todo o mês de Abril acordado, escrevendo alucinado. Eu estava incrivelmente apaixonado e tinha percebido que aquela obra seria um grande pontapé para minha carreira.
A despedida chegou. Foi traumático para mim e para os amigos que fiz por aquelas bandas. Deixei todos os meus pertences como lembranças para todos eles, voltei apenas com uma pasta, com aproximadamente 300 folhas. Esse calhamaço, se transformou em 247 com a revisão. E entreguei à editora. Lúcio Vansconcellos, editor da empresa, leu todo o livro e deu seu veredicto: estava ali, um sucesso. E as páginas eram tão gostosas que ele leu em uma noite, dominado pela curiosidade e deslumbramento com aquela grande viagem.
Meu amigo e colega de trabalho, Rocha Filho, se responsabilizou pelas orelhas do livro e Gildeth Cunha Mello pela diagramação e arte. No dia 25 de Outubro aconteceu o coquetel de lançamento, na Livraria PontoArte, e a maior surpresa que já tive na vida: Toda a Europa e a Ásia haviam se interessado no livro. Tamarhanguerib fincanciou todas as tradução asiáticas, além de comprar 500 mil exemplares.
Na obra, contei toda minha viagem, todas as dificuldades, todo o trajeto até chegar no paraíso. E aquela gostosa e atraente cidade me serviu de chave mestra para todas as páginas seguintes, onde contei sobre seus moradores, visitantes e belezas, numa escrita cerceada por um 4x4 do Núvols.
Já não era mais médico, nem jornalista, era o autor de "Memórias de Motel".

* Para quem se interessou nessa bela cidade, aí está minha terra, onde criei fortes raízes, onde me fiz acelga e escritor.